segunda-feira, 30 de junho de 2014

UM OU OUTRO, UM E OUTRO

Marcel Alves Franco

Ouviu-se, certa vez, que de tempos em tempos o homem precisa acreditar que sabe a razão pela qual existe e assim, direcionar suas intenções para um caminho, um objetivo ou realização. No entanto, antes de qualquer coisa, devemos reconhecer que o ser humano só se constitui na relação com o outro. Assim, “nossa realização pessoal”, está diretamente envolvida com as relações que estabelecemos no meio em que nascemos, com a forma que chegam a nós, com os valores, hábitos, regras sociais, conhecimento e outros signos. Mas como se estabelecem as relações? O que perpassa nelas? Qual a importância delas?

O ser humano, segundo os livros e manuais da Biologia, nasce, cresce, reproduz e morre. Mas o que era para ser tão simples, não é: antes de nascermos percebemos coisas. Do ventre materno, a caverna uterina similar a de Platão, percebemos sombras, silhuetas, vultos, clarões em tons avermelhados, sons, vozes, vasos sanguíneos vermelhos e azuis nos cercando e nos ligando à geradora, além de uma eterna sensação de flutuação ─ até que se chega o dia de sair.

Mesmo dentro de uma bolsa, que fica dentro de outra, que fica dentro de outra, e outra, até chegarmos à camada mais superficial da pele, sentimos frio e calor. Remexemos-nos e “chutamos”. Por vezes, ficamos quietos, outrora movimentos de uma mão, ora de mais, nos fazendo sentir uma estranha sensação de calmaria. Estaríamos interagindo? 

Surgido de duas células, de duas pessoas diferentes, depois de nove longos meses, o contato com o exterior acontece: neste dado momento do fenômeno nascimento, vive-se a dor da luz ofuscante, os sons que já eram incompreensíveis, rasgando os ouvidos, após o “tapinha”, o oxigênio entrar com agonia e ardor. Resultado: é apenas choro ou é interação?

Removem-nos. Laceram o fio que nos liga à geradora, o odor de sangue e placenta paira. Encobertam-nos em algo que provoca sensações por todo o nosso corpo e nos levam aos braços, abraços e caprichos de nossos geradores.

O primeiro contato olho a olho demora alguns dias, enquanto isso não ocorre, sentimos não somente o olhar das pessoas direcionado a nós, mas tudo a nossa volta: o toque, o aroma, sons, vozes ─ ainda incompreensíveis ─ nos fazendo perceber o que nos cerca e, além disso, diversas sensações dentro da gente.

Escutamos muitas coisas, mas não fazemos ideia do que estão falando. Sentimos uma pontada dentro da barriga, fina e constante e, quase que instantaneamente, quando começamos a chorar, o alimento nos vem de dentro daquela parte do recipiente que nos gerou, e nos damos o trabalho de sugá-lo. Percebemos o gosto do líquido branco, a pontada aguda se esvaindo, o cheiro do recipiente e dois brilhos, vindos de cima, apontando para nós: o que seria isso? Não importa muito agora, quando essa dor vier, o choro vai fazê-la passar.

Conseguimos repetir uma palavra que falavam. Não se sabe se foi papa ou mama, mas os dois começaram a mostrar aquelas coisas brancas na boca e também a chorar. Com o tempo, percebemos que se falássemos mama, uma pessoa sorria mais do que a outra, se fosse papa, se invertia. Um detalhe, aqueles brilhos que percebíamos logo quando começamos a nos alimentar, eram os olhos de nossa mama, a nossa geradora.
Com o tempo, o mundo era nosso alimento. Colocamos tudo na boca. Não, ainda não sabemos o que boca quer dizer, mas é nesse lugar que sentimos muitas coisas. Nosso alimento de percepção, de nós mesmos e de descobrimento das coisas. Tudo é novo e agora temos a capacidade de pegar, de nos mover para pegar, mesmo que rastejando; quando não, chorávamos apontando para aquilo que queríamos.

Agora sabemos o que boca quer dizer: é essa parte do corpo aqui. Onde a gente sente o gosto das coisas. O nariz é logo a cima, sentimos o cheiro. Os olhos, mais para cima, são para ver. Meu corpo é isso mãos, pernas, olhos, orelhas, boca e nariz. Com o tempo descobrimos que algumas dessas partes temos em pares e que outras crianças também têm a mesma coisa que nós; nem todas, mas a maior parte delas.

Não pensamos muito, pois tudo é novo e mágico, atrativo e vivo demais. Despertam coisas em nós e ao mesmo tempo, descobrimos que os outros são diferentes de nós. Começamos a andar, correr, pular, se esconder, entendemos palavras como o “sim” e “não”: sim é quando pode e o não quando não pode. E, além disso, aprendemos não só a falar como também outra maneira de conhecer o mundo: perguntando!

Com o passar do tempo escutamos algo estranho: uma voz dentro da cabeça da gente. Dizem os grandes que é um grilo e que o nome dele é Consciência. Não lembramos como entrou lá, mas tentamos de tirar, jogamos água, gritamos, colocamos coisas no ouvido para tentar tirar, mas não conseguimos e às vezes os grandes nos seguravam e diziam que ele não sairia nunca mais. Depois de muito choro, aprendemos a conviver, Consciência conversa conosco quando não estamos brincando com as outras crianças ─ e parece que elas também têm esse grilo nelas, perguntamos a elas se escutavam, chegamos até a juntar as orelhas, mas não ouvíamos nada.

Nas aulas com os números descobrimos que é nela que a voz mais aparece: toda hora ela faz a conta para nós: um mais um é dois. E assim colocamos no papel colorido. Mas ela também lê as histórias para nós enquanto estamos perdidos em nossa imaginação, parece que até nos desligamos do mundo e tudo se transforma no que estamos imaginando: as cores, as pessoas, as árvores, os animais, o céu, tudo é nosso e do jeito que a gente quer!

Bom, isso até descobrirmos algo diferente: o que sentimos, o outro não sente! Às vezes a gente chorava porque víamos outra pessoa chorar. Se ela estava chorando é porque estava triste, e isso nos deixava triste, por isso chorávamos. Mas, na verdade, nem sabíamos o motivo pelo qual a outra pessoa estava chorando, apenas que era triste vê-la assim.

Depois de certo tempo, começamos a perceber que nossos olhos eram diferentes, nossa cor era diferente, os outros tinham coisas que nós não tínhamos e nós coisas que eles não tinham ─ principalmente coisas de menino e de menina. Nesse momento percebemos que estamos coexistindo: precisamos do outro para poder brincar, que a sala de aula está sempre cheia, que não somos iguais.

Quando estava naquele lugar que chamavam de escola muitas coisas aconteciam: aprendemos a escrever, a falar mais palavras e até descobrir que a palavra “palavra” se chamava palavra. Além disso, é um lugar onde tivemos boa parte de nossas experiências de vida e, segundo os professores, “exercitamos a mente para nos tornarmos seres mais inteligentes”.

Hoje em dia, podemos dizer que somos seres pensantes. Percebemos que somos formados por uma estrutura complexa: somos seres biológicos, afetivos, culturais, sociais, entre outras dimensões. As experiências as quais vivenciamos em nossa fase inicial de vida, desde a pré-natal, dizem muito do que somos agora. Nossa sensibilidade e percepção estão diretamente relacionadas às possibilidades as quais as vivências nos permitiram desenvolver.

Encontramo-nos num estágio mais complexo de pensamento e de significações: o que antes era apenas um tipo de associação da imagem ao objeto, da fala ao objeto e do objeto ao próprio objeto, agora apresenta questionamentos sobre a forma como os signos foram aderidos em nossas vidas, como foram incorporados. Estes, entendidos enquanto resultantes da evolução da percepção da experiência e a sua interpretação, valendo-se enquanto processo evolutivo por toda a vida.

Hoje percebemos melhor o significado dado a cada um dos signos, o que nos possibilita a sua ressignificação. Um exemplo simples, porém, de extrema importância, é o lugar do outro na nossa formação enquanto seres humanos. No início, parece, de forma leiga, que a mãe é apenas fonte de alimento e aconchego, porém, desde antes de nascermos, já somos dependentes do outro para primeiramente existir e assim sobreviver: as canções de ninar, os olhares, o conforto, tudo é percepção, tudo é experiência. Não somos algo que se desliga do mundo e dos outros, mas que estamos sempre em relação. 

A partir desse exemplo, da relação mãe/bebê, podemos ressaltar as palavras que esta usava, os brinquedos, histórias, os toques, os gestos, comportamentos, ações e reações, tudo possui uma intenção, e com ela um sentido, um signo ─ compreendidos na forma de sinais que nos remetem ao objeto, de ordem material ou não, a ser sinalizado ─ que é assimilado e incorporado ao nosso mundo através do fenômeno linguagem. 

Neste sentido, podemos perceber que existem determinadas significações até mesmo para categorizar a experiência, por exemplo, pode-se considerar o poder do “acaso”, a originalidade, a liberdade e as variações espontâneas; do mesmo modo, há a possibilidade de ação e reação ocasionadas pelos fatos concretos, assumindo um aspecto resultante/consequente; e, noutro aspecto, a possibilidade de representação e de interpretação do mundo, um processo de desenvolvimento contínuo correspondente à inteligibilidade, ou por assim dizer, o pensamento em signos. Portanto, cada experiência possui estas mesmas manifestações em seu(s) fenômeno(s): da ideia de novidade, liberdade; da percepção do mundo sensual, ou concreto; e a terceira como aproximação das duas primeiras numa síntese evolutiva e intelectual.

O signo, ou melhor, a linguagem, é uma atividade evolutiva que acontece por meio de um processo de relações interpessoais, afirmando-se pelo reconhecimento de um elemento que não se pode furtar a relevância: o outro. Assim como no mundo, na outra pessoa encontramos a mesma barreia: cada um é cada um, mas um não existe sem o outro. Seria impossível conceber um apenas por motivo de a linguagem ser considerada um sistema vivo, ou seja, se readaptam, reproduzem, regeneram, transformam-se.

“Um ou outro, um e outro”, é disso que se trata. Na medida em que nos constituímos enquanto nós mesmos, seres de existência singular e coexistente, evidenciamos nossa presença não somente no mundo, mas no outro, pois, mesmo sem vínculos familiares ou consanguíneos, somos seres afetivos, sociais e culturais.

A dimensão social do ser humano é basicamente constituída da possibilidade de interação que os sujeitos possuem através da subjetividade, ressaltando-se o elemento linguagem. Os processos subjetivos são constituídos a partir das relações sociais, que acontecem em cenários culturais específicos, o que significa dizer que a cultura é toda essa estrutura de significação criada por seres humanos para fins de comunicação e estabelecimento de regras de convívio cuja função é a caracterização/identificação de um determinado grupo social, sejam comunidades específicas ou sociedades. E isso é impossível ocorrer sem a existência do outro!
O ser humano é tido como humano pela assimilação dessa cultura, pelo desenvolvimento da subjetividade, pelo poder de significação. Se fossemos apenas considerar humano pelo poder de adaptação, não seria necessária nenhuma discussão a respeito de sustentabilidade, de afeto, entre outras questões, pois, o homem enquanto espécie possui as mesmas possibilidades de um animal onívoro, porém, o que nos diferencia, respeitando-se diversas perspectivas, é, também, esta condição subjetiva.
O mundo está presente, é sempre manifesto; já o sentido, o signo, nem sempre. A cultura não é somente um ritual, uma tradição, ela é composta por dados sensíveis que para serem compreendidos é necessária uma introdução e uma atribuição de significado não somente aos seus elementos constitutivos, mas a toda a sua estrutura. Nisso, subentende-se que cultura não é algo imutável, é estável, mas não totalmente fixa, pois, os signos, a significação, os sentidos, são todos construídos pelas relações sociais, e estas por seres singulares. 
Cada um possui uma percepção, uma sensibilidade, uma existência e vivências de forma particulares, porém, nada os impede de compartilhá-las, utilizá-las para um exercício reflexivo, e assim, transmitir certos sentidos, signos e significados uns para os outros sem necessariamente terem de vivenciar as mesmas coisas, podendo modificar e atribuir determinado sentido de acordo com aquilo que se esteja vivendo no momento, por exemplo. 
Em outras palavras, o signo, está ligado à alguma qualidade ou a algum aspecto do objeto, mas não o é efetivamente, pois não possui o poder de recobrir tudo, e assim, sua incompletude e impotência acarreta na possibilidade de surgirem novas interpretações, novos olhares, perspectivas e percepções.

Um beijo na testa é sinal de proteção. Noutro lugar é sinal de respeito. Porém, há lugares que não se beija ou abraça, apenas cumprimentam-se as mãos. Alguns sentidos são percebidos e de forma intencionais assumidos num determinado estilo de vida, numa determinada cultura, numa nova cultura; outros são reproduzidos. Não quer dizer que não sejam importantes, são sim, da mesma forma como os emergentes, por razão deles dizerem quais são as características da estrutura cultural, que mesmo vistos de forma isolada, todos remetem uns aos outros e também à estrutura de uma forma específica.

Mas como se estabelecem as relações? A relação entre duas pessoas é vista de forma mediada, ou intersubjetiva, ou seja, há um campo simbólico que parte tanto do mundo cultural, quando de cada pessoa. Mas esses campos não só se sobrepõem, mas se intercomunicam em trocas dialógicas: estendendo-se aos efeitos de incorporação de signos e sentidos gerados nas experiências das relações sociais. 

Estamos para o mundo da mesma forma que estamos para o outro, no entanto, o outro tem um papel diferente: de coexistir e de entrar em conflito conosco para firmar o nosso lugar e seu próprio lugar no mundo, fazendo-nos conhecer, e reconhecer a cada conflito, a nossa subjetividade e a do outro. É a dialética em si: somos influenciados ao mesmo tempo em que influenciamos todo o processo de construção da subjetividade, entendendo-se então que as relações estabelecem-se no meio social.

O que perpassa nelas? Que tal, todo o peso sócio-histórico-cultural? Ou o conhecimento criado até então pela humanidade? Ou até mesmo os novos desafios e descobertas que foram postulados por gerações anteriores em busca de soluções ou novos caminhos? 

Como se sabe, a significação ─ elemento crucial para a definição do ser humano enquanto humano ─ se encontra no efeito da interlocução, e não na palavra! A forma como ocorre a percepção de um indivíduo auxilia no desenvolvimento da sociedade, seja em termos culturais, econômicos ou sociais, afinal, como já referido, somos dialeticamente modificados! Somos manifestos singulares! E as trocas dialógicas, concomitante à ação intencional ─ que já se considera percepção durante o movimento ─ causam alterações nos sentidos/significados de pessoa para pessoa. O que não é algo de todo mal, pois, o conflito servirá para irem-se preenchendo as lacunas de determinados problemas a partir do diálogo promovido entre as experiências das pessoas.

Qual a importância delas, as relações? Além da potencialização da interação humana, a ampliação da possibilidade de difusão e efetivação do processo de construção e reconstrução do conhecimento. De fato, com o avanço tecnológico-científico, as interações sociais estão sendo cada vez mais ressignificadas para o modelo “artificial”. O isolamento, o afastamento, a solidão, são elementos constantes, porém cobertos com uma manta, que os esconde, os maquia. A troca de mensagens é importante, tem seus sentidos e significados, mas será que substitui um olhar, um toque, o amor? 

Sim, são formas que estão sendo modificadas de acordo com a necessidade e adaptabilidade da situação; no entanto, até onde vai esta necessidade? E será que realmente é uma necessidade? O que é necessidade?
É na dinâmica entre as pessoas que os significados começam a emergir e a se manifestar. Novos símbolos, signos, sentidos, com o tempo, com a cultura, com as relações sociais, no campo intersubjetivo atualmente carente da interação interpessoal: é na mediação [o que entendo como campo intersubjetivo] que as pessoas iriam sendo introduzidas, desde antes do nascimento, à comunidade humana, pois é desde o tempo fetal que se começa uma organização para recebimento do ser que estar por vir, e que dentro desta se faz presente um processo de internalização da cultura, na intenção de torná-lo um indivíduo social, em outras palavras, humanizado.

Dessa forma, talvez a pergunta não seja mais se estamos interagindo; mas, talvez: o que estamos fazendo de nossa interação? A fim de descobrirmos quais os sentidos/significados que estamos atribuindo a ela, se é algo recíproco, se estamos em acordo ou desacordo e de que forma esse sistema tão complexo que é a relação social está sendo efetivo para uma mudança positiva.